'Rachadinha’: Na reunião com Bolsonaro, advogada de Flávio diz que teve acesso a denúncia do MP antes da peça ser apresentada.


'Eu vi, ninguém me contou. Eu li a denúncia', relatou Luciana Pires em áudio; ao GLOBO, ela alega que falou ‘denúncia’ no sentido genérico e afirma que não teve acesso à peça formal.

Por Bernardo Mello e Caio Sartori — Rio

Durante uma reunião no Palácio do Planalto, a advogada Luciana Pires, que defende o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso da "rachadinha", disse que leu a denúncia do Ministério Público do Rio (MP-RJ) contra o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro cinco meses antes de a peça ter sido de fato protocolada. Na gravação do encontro, feita pelo então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, Pires afirma que a denúncia contra Flávio "estava pronta" em junho de 2020. Ela diz que conseguiu "brecar" a peça naquela ocasião ao obter uma decisão, no Tribunal de Justiça do Rio, que concedeu foro privilegiado a Flávio. Também sugeriu ter relação de amizade com promotores que trabalhavam no caso. A reunião ocorreu no dia 25 de agosto de 2020, em meio a movimentações da defesa de Flávio e do entorno de Bolsonaro para anular relatórios do Coaf sobre movimentações financeiras do senador. Os documentos serviram de base para a apuração do MP do Rio sobre a prática de "rachadinha" — o desvio de salário de assessores quando ele era deputado estadual. Além do próprio Bolsonaro e de Ramagem, participaram do encontro o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e a advogada Juliana Bierrenbach, que também atuava na defesa de Flávio.

As declarações de Pires ocorreram já na reta final da reunião com Bolsonaro, após o então presidente orientar que as advogadas procurassem dirigentes da Receita Federal para apurar uma suposta atuação indevida de servidores contra Flávio. Depois da sugestão, Pires tomou a palavra e, ao comentar sobre um habeas corpus envolvendo foro privilegiado que conseguiu para Flávio, frisou a Bolsonaro que o filho seria denunciado, e que já tinha lido a peça."O que acontece? Em algum momento o Flávio vai ser denunciado. Na verdade, eu consegui brecar isso com um habeas corpus. Tinha, eu vi, ninguém me contou. Eu li a denúncia. Tem busca e apreensão até no gabinete no Senado. Tem promotores que não concordam com isso no Rio de Janeiro, que não gostam dessas maldades. Tem promotores que têm respeito pela família do senhor", disse a advogada na reunião. Na sequência do áudio, Pires afirma que "acabou com a festinha deles", e cita nominalmente figuras influentes no MP fluminense, como o então procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, e o ex-procurador-geral Marfan Martins Vieira."Acabei com a festinha deles. No dia seguinte, teria uma mega operação. Meu HC foi julgado, o habeas corpus, no dia 25 de junho, uma quinta-feira. No dia 26, a denúncia (seria) recebida para decisão pronta do juiz de primeira instância Flávio Itabaiana", completou Pires.

Procurada, a advogada afirmou ao GLOBO que não falou da denúncia enquanto “peça exordial”, e sim de forma genérica, como sinônimo de acusações.— Eu falei ‘denúncia’ de forma genérica, num linguajar leigo, e não me referindo à peça formal de acusação, à peça exordial. Estava falando para uma pessoa (Bolsonaro) que não tem conhecimento do linguajar jurídico. Quis dizer que tinha lido todo o PIC (procedimento investigatório criminal) e que imaginava o que estava por vir — alega Luciana Pires. A defensora também afirmou à reportagem que não faria sentido o MP lhe mostrar a peça, dado que o órgão e a defesa do senador viviam uma “guerra”Em um momento do áudio, no entanto, a advogada afirma ter relações próximas com promotores do MP fluminense, sem especificar quem são. Ela diz ter atuado na defesa de familiares de promotores que teriam sido alvo do próprio Ministério Público."Tem promotores que têm respeito pela família do senhor. E eu conheço essas pessoas, já defendi alguns familiares deles, contra os próprios membros que fizeram esse tipo de maldade. Eu li, tá? Tinha a denúncia pronta", reforçou na reunião.

Contexto.
Exatos dois meses antes da reunião no Planalto, a defesa de Flávio conseguiu uma vitória importante na Justiça do Rio ao emplacar a tese que estabeleceu uma espécie de “foro retroativo” para o senador. O caso corria na primeira instância porque, com a definição de foro atualizada pouco tempo antes pelo STF, um político só teria direito ao benefício se o suposto crime tivesse sido cometido durante o mandato que ele ocupava no momento. No caso do filho de Bolsonaro, que era deputado estadual na época das acusações e virou senador, a lógica de ser julgado com o foro de senadores não se aplicaria. A advogada, então, argumentou — e o Tribunal de Justiça concordou — que ele deveria ao menos ser investigado e julgado na segunda instância, foro dos deputados estaduais. Com isso, o caso teria que ser tocado no MP pelo procurador-geral de Justiça do estado e julgado pelo Órgão Especial do TJ, não mais pelo juiz Flávio Itabaiana, da primeira instância. Na sequência da reunião, Luciana Pires recorda que o então procurador-geral, Eduardo Gussem, que assumiu o inquérito, deu uma designação para autorizar promotores de primeira instância que investigavam Flávio a continuarem nas apurações, mas sob sua alçada. Ela critica o movimento e diz que a situação acabaria em dezembro, mês final da gestão de Gusssem no MP. A denúncia só seria apresentada em novembro de 2020 ao Órgão Especial. A peça acusava Flávio, familiares e assessores de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A defesa, no entanto, conseguiu outras decisões judiciais — dessa vez no Superior Tribunal de Justiça (STJ) — que minaram o caso, incluindo a anulação de provas e de pareceres da primeira instância.

No início de 2022, a denúncia foi anulada pelo TJ do Rio a pedido do próprio MP, que considerou que a derrubada de provas inviabilizava a peça de acusação. No entanto, o MP deixou em aberto à época a possibilidade de refazer as investigações. Como a própria Luciana disse na reunião gravada no Planalto, os advogados do senador sempre entenderam que o caminho para livrá-lo das acusações era com base em supostas falhas processuais, dado que o mérito das “rachadinhas” era de difícil contestação."O caminho tem que ser processual, tá? Materialmente é muito ruim. A história é ruim", apontou ela a Bolsonaro na reunião.

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