“Militares não gostam de ser usados como um instrumento político pelo Governo”
Pesquisador Christoph Harig vê "risco de frustração alto" para Forças Armadas na intervenção no Rio.
NATÁLIA VIANA (AGÊNCIA PÚBLICA)
Entre 2014 e 2016, Christoph Harig frequentou bases do Exército no Rio, em São Paulo e Minas Gerais, conversou com dezenas de membros das Forças Armadas e fez entrevistas por meio de um questionário com 130 militares que estiveram no Haiti ou em operações de segurança interna. Tudo para sua tese de doutorado, defendida no Brazil Institute, um centro de pesquisa da renomada universidade King’s College, em Londres. “O maior grupo [de militares ouvidos] disse isto: eles não gostam de ser empregados em tarefas policiais”, afirmou, em entrevista à Pública. Hoje doutor em estudos de segurança, Christoph acompanha, desde a Inglaterra, os desdobramentos da intervenção militar decretada pelo presidente Michel Temer na última sexta-feira e aprovada pelo Congresso esta semana. E critica: “A intervenção federal funciona para ofuscar o fato de que os militares estão no Rio há muito tempo, desde julho do ano passado, sem resultados muito positivos”. Leia a entrevista.
Pergunta. Como foi desenvolvida sua pesquisa de doutorado?
R. Comecei em 2014, e a ideia era comparar a experiência no Haiti com a do Rio e de outras Missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Eu fiz entrevistas através de um questionário com 130 membros do Exército, de variadas patentes, que estiveram no Haiti ou em missões de GLO — ou em ambos — e fiz cerca de 30 entrevistas pessoais em bases militares no centro de treinamento de GLO em Campinas, no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, no Rio e uma base em Minas Gerais, quando os soldados acabavam de retornar da ocupação na Maré em 2015.
As entrevistas corroboram um pouco o que o general Augusto Heleno, ex-comandante das tropas no Haiti, afirmou em entrevista recente. Os militares preferem ter regras de engajamento relativamente lenientes com as quais eles possam fazer ações ofensivas contra criminosos. Uma das lições que dizem ter aprendido no Haiti é que, se eles podem fazer ações ofensivas contra gangues, conseguem derrotá-las em uma região da cidade.
P. Mas essa atual intervenção já prevê que os militares vão ser julgados pela Justiça Militar. O que mais eles querem?
R. Veja, pessoas como o general Heleno… No Haiti, o Heleno deu ordens às suas tropas para atacar pessoas que estivessem recolhendo corpos das ruas. Ele disse em entrevistas que eram todos alvos legítimos. A teoria do Heleno é que os grupos armados no Rio constituem inimigos e eles podem ser mortos sem qualquer consequência para os soldados. Querem um enquadramento jurídico no qual não haja nenhuma consequência legal, um excludente de ilicitude.
Muitos dos que entrevistei para minha tese reclamaram que no Rio eles não puderam agir como no Haiti. Achavam que, se pudessem fazer o mesmo, teriam a liberdade para efetivamente derrotar as gangues. Eles querem mandados de busca e apreensão coletivos, e o Governo quer dar a eles. E reclamam que, se eles não tiverem esses mandados, serão enganados pelas organizações criminosas, que escondem armas e drogas em várias casas.
P. Em uma audiência no Senado em junho do ano passado, o comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, disse que o uso das Forças Armadas em ações de segurança pública é “desgastante, perigoso e inócuo”. Ele disse, inclusive: “Nós não gostamos desse tipo de emprego, não gostamos”. Você encontrou essa mesma visão nas entrevistas que fez para seu doutorado?
R. O maior grupo de entrevistados também disse isto: eles não gostam de ser empregados em tarefas policiais. Eles não gostam das missões de GLO. De um lado, dizem que, se forem empregados, deveriam ter a permissão de fazer o que quiserem. Mas muito mais militares dizem que seu papel não deve ser agir contra a própria população brasileira. Grande parte diz que isso é tarefa da polícia, e eles não deveriam fazer o que a polícia fracassou em fazer. No questionário, a pergunta era: “Você acha que as Forças Armadas devem ter um maior envolvimento com segurança pública?”. Dentre as 116 respostas, 49% disseram que não deveria se envolver nem um pouco com segurança pública; 25,9% acharam que deveriam se envolver bastante, e outros 25% acharam que deveriam se envolver muito pouco. A outra pergunta foi: “Qual é o segundo papel mais importante que as Forças Armadas devem desempenhar além de defender o território nacional?” Recebi 86 respostas. 44,2% respondeu que devem ser as operações de paz da ONU. Apenas 24,4% — menos de um quarto — disse que deveria ser segurança pública.
Vale dizer que a pesquisa que eu fiz não representa todo o Exército; eu escolhi apenas militares que haviam estado no Haiti ou em ações de GLO. Eles acham que é muito desgastante, os soldados passam semanas em quartéis em algum lugar. É desconfortável, é perigoso.
P. Qual operação de GLO os entrevistados avaliaram como a pior?
R. A operação na Maré foi particularmente frustrante. Eles comparavam frequentemente a Maré [2014-2015] com a ocupação do Complexo do Alemão [2010] e diziam que no Alemão foi relativamente bem. No Alemão, eles tinham mandatos de busca coletivos em algumas áreas e tiveram uma percepção de ter mais apoio do Governo, porque fazia parte de um plano mais amplo, a estratégia de pacificação. Eles invadiram e ocuparam o Alemão, expulsaram os criminosos junto com a polícia. Na Maré, eles simplesmente ocuparam a área por um tempo, sem a permissão para agir ofensivamente. Só que no Alemão havia apenas o Comando Vermelho, enquanto na Maré havia três grupos brigando. Tinha também o Terceiro Comando Puro, a ADA… E os soldados ficaram no meio do fogo cruzado. Muitos dos entrevistados disseram que recebiam tiros dos dois lados. E os grupos criminosos não foram embora, ficaram onde estavam porque senão as outras gangues iam dominar o território. Então os criminosos esconderam as armas, levaram uma vida normal por um tempo e depois voltaram a agir exatamente como antes.
P. Bom, isso ocorreu no Alemão também…
R. Claro, está tudo como era antes. Mas os militares só têm uma visão limitada da parte deles da missão. No Alemão, eles viram que expulsaram os criminosos e ocuparam o território por um tempo. Mas é claro que o fracasso do governo em trazer serviços sociais levou ao fracasso geral.
P. A missão de Paz da ONU no Haiti, chefiada pelo Brasil (Minustah), é tida como bem-sucedida pelas nossas Forças Armadas. Mas houve diversos problemas — desde o fato de que a Minustah entrou no país após a remoção do presidente por militares americanos, passando por acusações de abuso sexual e até a importação de cólera para o país, que matou mais de 9.000 pessoas. A Minustah de fato pacificou o país?
R. Os militares brasileiros conseguiram manter uma imagem de que suas ações no Haiti estão separadas dos outros contingentes. Eles não assumem responsabilidade por esses erros. Não houve acusação formal de assédio sexual contra brasileiros [houve denúncias internas, segundo apurou a Pública]. Nem tudo pode ter sido investigado, claro. Mas a missão militar foi bem-sucedida. As favelas de Porto Príncipe eram dominadas por gangues, e os militares as expulsaram. Agora, os militares aceitam que há um “efeito colateral” enquanto enfrentam o inimigo. Eles aceitam que há vítimas civis. Na perspectiva deles, é um mal necessário se eles querem mesmo eliminar criminosos. Isso é problemático do ponto de vista dos direitos humanos, porque essas pessoas não fizeram nada, apenas viviam em áreas dominadas por gangues.
P. Quantas pessoas morreram na primeira fase de incursões nas favelas de Porto Príncipe?
R. Não acredito que existam números oficiais. Os comandantes admitiram a responsabilidade por algumas dezenas de mortes nas operações de 2007. Mas organizações de direitos humanos dizem que muito mais pessoas morreram. É difícil conseguir o número real.
P. Na sua opinião, a Minustah conseguiu de fato derrotar as gangues na capital haitiana?
R. Eu acho que é majoritariamente uma impressão dos militares. Hoje, no Haiti, as gangues criminosas ainda estão lá, mas estão agindo de uma maneira diferente. O que os soldados da Minustah fizeram foi redirecionar a prevalência das gangues em certas áreas durante um certo período. Mas é assim a visão das Forças Armadas: os militares se concentram apenas nas suas próprias ações, não em ações políticas, que deveriam vir depois. Para eles, o fracasso posterior em reconstruir o Haiti não é responsabilidade deles.
P. Você acha que a percepção dessa operação no Haiti com bem-sucedida é um engano?
R. Eu li um artigo de opinião de um ex-comandante militar dizendo que eles acreditam que a maneira brasileira de fazer missões de paz, sendo simpáticos com a população local, por exemplo, contribuiu para o sucesso no Haiti. Isso, obviamente, deixa de lado o fato de que eles foram muito agressivos contra os civis e não bate com o que as organizações de direitos humanos dizem sobre os brasileiros. Mas você tem que admitir que, comparados com outros contingentes, como os nepaleses ou jordanianos, os brasileiros se comportaram bem. Nas entrevistas que fiz, os líderes militares reconhecem, também, que a Minustah, enquanto missão, não resolveu os problemas econômicos e sociais do Haiti. Eles falaram muito que a pobreza continuava, a atuação de criminosos em Porto Príncipe… Ou seja, cumpriu a parte militar da missão, mas não conseguiu melhorar a situação geral do Haiti.
P. Em entrevista à Pública, o ex-ministro da Defesa Celso Amorim disse que essa é uma intervenção política, e não militar, porque não foi uma demanda das Forças Armadas, mas do presidente. Você concorda?
R. Sim, eu concordo. Eu diria até que os militares realmente não se sentem confortáveis com essa missão. Não é uma intervenção militar, é uma decisão do Governo de colocar um general no comando porque vai render mais como propaganda. E eu acho que a intervenção federal funciona para ofuscar o fato de que os militares estão no Rio há muito tempo, desde julho do ano passado, sem resultados muito positivos.
P. Até que ponto essa intervenção é uma ampliação do uso já feito da GLO por governos anteriores, ou é algo novo?
R. Tem havido uma expansão contínua do uso da GLO desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso, mas até o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva todas essas operações duravam um tempo muito limitado. O Governo Lula foi o que começou a ter operações de GLO de longo prazo, com a pacificação do Alemão em 2010. A aliança de Lula com Sérgio Cabral enxergou um ganho político em enviar os militares ao Alemão antes da Copa do Mundo. Isso, na minha opinião, abriu uma caixa de Pandora, porque depois dessa missão governadores de todo o Brasil passaram a ficar interessados em operações de GLO e começaram a pedir quando não era realmente necessário.
P. Por exemplo?
R. Por exemplo no Rio Grande do Norte, quando a polícia entrou em greve em 2017 — eu entendo que se chame o Exército quando não há polícia, mas os policiais entraram em greve porque estavam sem receber salário havia meses. Então usaram os militares para dourar a pílula sobre o seu próprio erro. Até mesmo o prefeito de Porto Alegre pediu assistência militar quando houve o julgamento do Lula, por causa dos protestos. Isso é ridículo, é um golpe de marketing. Ele sabe que como prefeito não tem o poder de chamar os militares, mas passa a impressão de que está fazendo algo. E o Rio de Janeiro está se tornando cada vez mais abusado. Em fevereiro do ano passado, o governo do Rio pediu 22 mil soldados do Exército para o Carnaval, segundo o Estadão noticiou. Os militares permitiram o emprego de 9.000 soldados. Então, falando cinicamente, a intervenção é a consequência lógica da banalização das operações de GLO. Agora, a intervenção federal é definitivamente um passo além disso. É uma medida muito drástica para superar a responsabilidade do Governo estadual por essa área. E eu acho muito perigoso, porque ela corrobora a lógica do intervencionismo militar, aqueles que acreditam que os militares seriam a solução dos problemas brasileiros.
P. Como o Jair Bolsonaro?
R. Exatamente. E o Sérgio Cabral está na cadeia por corrupção, houve vários escândalos ligados ao PMDB do Rio, muito dinheiro simplesmente desapareceu em contas privadas, então não tem mais dinheiro para saúde, educação… Nenhum desses problemas vai ser resolvido com uma intervenção federal na área de segurança.
P. E qual pode ser o resultado da intervenção em termos de ânimo das tropas?
R. O risco de frustração é alto. Eles esperam poder obter um “excludente de ilicitude”, embora grande parte das tropas não queira estar lá. É, na verdade, um tipo de operação muito malvista pela liderança das Forças Armadas. Nas entrevistas para meu doutorado, muitos militares disseram que não gostam de ser usados como um instrumento político pelo Governo — porque agora as ações deles podem até afetar o resultado das eleições.
P. Você acredita que há um risco de essa visão do intervencionismo militar também se expandir dentro da tropa?
R. Olha, eu estou entre os poucos que não acreditam que os militares querem tomar o Governo. Eu acho que eles ficam muito mais confortáveis quando podem se concentrar em missões externas. E há muito receio de que, quanto mais tempo eles estejam envolvidos em missões internas, maior é o risco de que esses grupos criminosos possam corromper os soldados. Alguns entrevistados de alta patente se mostraram muito preocupados com o poder dos grupos criminosos de corromper. Eles sabem que os militares de baixa patente não ganham muito e sabem que os criminosos podem oferecer dinheiro. Eles veem o que acontece com a polícia e querem evitar isso.
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