Pílula do câncer: oncologistas alertam para risco e criticam "afronta" à comunidade científica

Para presidente da ANM, país vive processo de judicialização da medicina.


Jornal do Brasil
Ana Siqueira*

Após o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin conceder uma liminar autorizando a distribuição da fosfoetalonamina a uma paciente terminal, os debates acerca da “pílula do câncer”, nunca testada em humanos, se acirraram. Para o presidente da Academia Nacional de Medicina, Francisco Sampaio, o país vive um processo de judicialização da medicina. De acordo com ele, o Judiciário não possui expertise para julgar o real benefício de uma droga ou procedimento e, na maioria das vezes, não há tempo suficiente para buscarem assessoria médica sobre o tema. Com a decisão do STF, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), desembargador José Renato Nalini, estendeu os efeitos da liminar para todas as pessoas que solicitarem acesso à substância na Justiça. A fosfoetalonamina sintética foi estudada pelo professor Gilberto Orivaldo Chierice, hoje aposentado, enquanto ele ainda trabalhava no Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos. Alguns pacientes tiveram acesso às cápsulas produzidas por Chierice e passaram a utilizá-las como medicamento contra o câncer.

Para o oncologista Daniel Tabak, entretanto, a pílula nem poderia ser chamada de medicamento. “É uma substância que não seguiu os critérios estabelecidos para se tornar medicamento, não passou por testes fundamentais de segurança e eficácia. E a forma como essa questão foi tratada é uma afronta à comunidade científica do Brasil. Determinar que uma universidade com o peso da USP seja obrigada a distribuir a substância sem levar tudo isso em consideração pode resultar em danos significativos para todos esses pacientes”, enfatiza. A própria USP divulgou uma nota afirmando que cumprirá os mandados judiciais dentro de suas capacidades, mas que não é uma indústria química ou farmacêutica e, portanto, “não tem condições de produzir a substância em larga escala, para atender às centenas de liminares judiciais que recebeu nas últimas semanas”. O texto também falava sobre a produção sem qualquer garantia de quantidade, uma preocupação para seus pesquisadores. “A substância em questão foi alardeada como panaceia para o câncer (cura para diversos tipos de neoplasia), mas na realidade, como afirmado pela própria universidade, não passou por testes em humanos nas diversas fases necessárias para se saber se possui mesmo ação anti-neoplásica”, explica Sampaio.

Na opinião de Tabak, que também é hematologista e membro da ANM, o simples fato da substância se apresentar como cura única para os diversos tipos de câncer já levanta dúvidas. “Eu não posso imaginar que um paciente com câncer de mama vá ter a mesma resposta que um paciente com leucemia. Isso é muito simplista e vai na direção contrária da individualização dos tratamentos, que é para onde estamos caminhando”, aponta. Ainda segundo ele, existem milhões de perguntas que só os devidos testes clínicos poderiam responder. “Os pacientes vão se questionar se essa substância pode ser utilizada concomitantemente com o tratamento tradicional. Se existir interação, a gente não sabe se ela pode ser tóxica ou até mesmo letal. A decisão é, no mínimo, irresponsável e precipitada”, esclarece.

Preocupada com a questão, a ANM irá reunir, no primeiro semestre de 2016, diversos especialistas em oncologia para um debate sobre a “pílula do câncer”. O presidente da Academia ainda lembra que o caminho correto para que um medicamento possa ser comercializado no Brasil envolve quatro fases de estudos clínicos, além das devidas autorizações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Em que pesem todas as críticas que possamos ter sobre demora de liberação, processos atrasados, etc., devemos seguir o padrão estabelecido”, opina o especialista. A substância também não é reconhecida em outros países. A agência reguladora dos Estados Unidos, o Food and Drug Administration (FDA), nunca se pronunciou sobre a fosfoetalonamina. “O FDA é muito rígido para colocar na praça um medicamento sem comprovação científica. Não existe nenhum estudo na literatura mundial dizendo que isso tem benefícios para os pacientes”, opina Jacob Kligerman, ex-diretor geral do Inca. Daniel Tabak concorda; para ele, a Justiça norte-americana nunca passaria por cima da comunidade científica como, na sua opinião, aconteceu no Brasil. “Isso traz mais um manto de incredibilidade sobre como as coisas acontecem por aqui”, lamenta.

Em conversa com o JB, Jacob Kligerman destacou que não é sensato abandonar o tratamento tradicional. “Não existe nenhum trabalho aprofundado sobre essa substância na literatura, ela não passou por várias fases exigidas para colocar no mercado um medicamento anti-câncer, então se trata de mais uma droga que provavelmente decepcionará os pacientes que abandonarem o tratamento tradicional, comprovado clinicamente. Não vejo nenhuma vantagem nisso”, enfatizou.

Ministério da Saúde cria grupo de trabalho para estudar a fosfoetanolamina
Em resposta à polêmica, o Ministério da Saúde decidiu criar um grupo de trabalho para estudar a “pílula do câncer”. Após ter acesso ao texto que deverá ser publicado no Diário Oficial da União nesta sexta-feira (30), o Estado de S. Paulo informou que haverá um prazo de 60 dias para que a comissão apresente uma linha básica de atuação. Ainda assim, é preciso que o grupo que desenvolveu a substância dê seu aval para novas pesquisas.

"Nunca foi feito nada disso. Se criou uma tensão nacional. A grande preocupação é que pessoas deixem de fazer o tratamento adequado para usar um produto que não tem eficácia comprovada", afirmou o chefe da pasta, Marcelo Castro. A ideia seria envolver o Instituto do Câncer e a Fiocruz nos estudos, que serão financiados pelo ministério. O ministro ainda fez um apelo para que os pacientes não utilizem a substância até que ela seja devidamente testada.

"É temerário. Não sabemos os efeitos que ela pode causar. Não quero entrar no mérito de porque testes não foram feitos até agora. O importante é esclarecer", opinou. Ele ainda afastou as hipóteses de que a droga não é comercializada por pressões de grandes grupos econômicos e assegurou que as próximas etapas serão conduzidas de forma ágil.

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