De QG do golpe a porão da ditadura

O DIA visitou o quartel em Juiz de Fora onde ações decisivas para o movimento que derrubou Jango foram orquestradas. De lá, tropas do Exército pegaram a estrada em direção ao Rio, às vésperas do fatídico 1° de abril de 1964. No mesmo batalhão a presidenta Dilma foi torturada em 1972.


JULIANA DAL PIVA

Juiz de Fora - Rua Mariano Procópio, 970. O endereço situa­do no Centro de Juiz de Fora, cidade mineira a 182 quilômetros do Rio, guarda até hoje dois momentos marcantes da História do Brasil. Foi de lá que, a partir das quatro horas da ma­nhã no dia 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho resolveu ainda de pijama colocar sua tropa na rua para derrubar o governo do presidente João Gou­lart. O que não se sabia até agora é que na mesma unidade, oito anos depois, a presidenta Dilma Rous­seff viveria parte de seu calvário durante os tempos em que esteve presa por sua militância política contra o regime militar. O quartel de Juiz de Fora abri­gava há 50 anos o comando da 4ª Região Militar (4ª RM), uma das 12 unidades existentes no Brasil. Há duas semanas O DIA visitou o local onde agora funciona o Comando da 4ª Brigada de In­fantaria Motorizada, batizada de “Brigada 31 de Março”. Arboriza­do, arejado e tranquilo. Resta atu­almente no quartel muito pouco do clima vivido a partir de 1964. O Exército embora tenha conduzi­do uma visita breve no pátio não quis conceder entrevista.

Junto ao então comando da 4ª RM também funcionava a 4ª Com­panhia de Polícia do Exército, local onde Dilma contou, em depoimen­to prestado ao Conselho de Direi­tos Humanos de Minas Gerais, ter sido interrogada, queimada e in­toxicada. “Um dia a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogêneo, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital”, contou Dilma ao se referir a sua passagem pela 4ª Cia de Polícia do Exército.

Os dois acontecimentos de­monstram como Juiz de Fora foi uma cidade estratégica para o regime militar, a começar pelo sucesso do golpe. Em suas memó­rias, o general Mourão Filho des­creveu que, impaciente à falta de decisão do então governador de Minas, José de Magalhães Pinto, companheiro golpista, sobre o mo­mento do início do golpe, ele re­solveu agir. Poucas horas antes do amanhecer do dia 31, tinha início a “Operação Popeye”: a descida do Destacamento Tiradentes de Juiz de Fora para o Rio. O nome, de acordo com historiadores, vem do inseparável cachimbo de Mourão ao longo do caminho ao Rio.

O início da marcha sofria resis­tência até dos próprios conspira­dores. Pesquisadores dizem que o próprio marechal Humberto de Alencar Castello Branco tinha medo da falta de apoio do coman­dante do II Exército (São Paulo), Amaury Kruel, que só aderiu no fim da noite do dia 31. E a con­firmação do sucesso do golpe só aconteceria no dia seguinte. Mas militares ligados à alta cú­pula da Aeronáutica contam uma história diferente. De acordo com eles, a derrubada de João Goulart já era tramada há tempos, desde a renúncia de Jânio Quadros. Bri­gadeiros como João Paulo Moreira Burnier haviam participado até da campanha do político que prome­tia “varrer a corrupção do país” e estavam atônitos com a presidên­cia nas mãos de Jango. Eles então passaram a se reunir logo após a renúncia em suas casas.

Vídeo:  O dia do Golpe Militar




Um dos militares conta que desde fevereiro a derrubada do governo já estava programada para o dia 31 de março. O então governador da Guanabara, Car­los Lacerda, sabia em detalhes dos preparativos e havia até um plano para tirá-lo do país caso o golpe falhasse. “Cheguei a vi­sitar um campo de pouso em Uruguaiana para levarmos La­cerda”, revelou. Outros dizem que tudo estava programado para que as primeiras tropas partissem da Vila Militar, em Deodoro.


A cientista social e professora da Pontifícia Universidade Católi­ca do Rio (PUC-Rio) Maria Celina D’ Araujo observa que existe entre os militares uma disputa pela “pa­ternidade da revolução”. Mas não há dúvida de que foi a articulação do Exército a principal responsá­vel pela força do golpe. “O Exército era a maior força. Os generais Lott, Golbery, Cordeiro de Farias, Costa e Silva e o próprio Geisel, que não era general ainda”, explicou. Um grupo de oficiais conta que até a escolha de Castello Branco como presidente já havia sido acertada um mês antes da saída de Jango. Carlos Lacerda seria uma opção para parte do gru­po, mas apenas após as eleições que seriam convocadas em 1965. Ele não queria o estigma de golpista.

A pesquisadora Maria Celina D’ Araujo contrapõe. “Lacerda não era um político muito do­mesticável. Tinha uma claque na Aeronáutica, mas não a confiança da maioria dos chefes militares das forças. Em 1964, há uma ca­racterística importante: quem impulsionou o movimento foram os jovens oficiais. Os radicais es­tavam com Costa e Silva. Os que achavam que era mais um golpe estavam com Castello Branco. E essa briga é resolvida no grito”, apontou. Nesse aspecto vários de­les concordam.


O calvário da militante Dilma
No depoimento, a presidenta Dilma apon­tou a violência sofrida na 4ª Companhia de Polícia do Exército, mas disse que não sabia identificar todos os locais onde foi torturada em Juiz de Fora. Presa em ja­neiro de 1970 em São Paulo, na Operação Bandeirante, Dilma foi transferida para interrogatórios e torturas no Rio e em Minas diversas vezes. “Em Minas Gerais, quando comecei a ter hemorragia, cha­maram alguém, que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam”, contou. Ela respondeu a processos nos três estados e só foi libertada em 1973. Nesse período – é provável que a pre­sidenta nem saiba – por muitos anos o Mu­seu Mariano Procópio, próximo ao quar­tel, chegou a ter uma sala em homenagem ao general Mourão Filho. Lá estava até o cachimbo, segundo conta o professor José Luiz Ribeiro. “Tudo comemorando aquilo que eles chamavam de revolução e a gente diz que é golpe”, diz.

O Comitê da Verdade de Juiz de Fora avalia que a cidade ignorou os aconteci­mentos históricos envolvendo a ditadura por muito tempo e agora o grupo trabalha para fazer a população refletir e debater o que ocorreu. “O nosso papel agora é de contar a história, começaremos isso pelas escolas. Para que isso nunca mais acon­teça. Se vai haver punição ou não, cabe apenas ao Congresso Nacional”, explica Agnaldo de Paiva, membro do comitê. O atual endereço do quartel onde fun­cionou a 4ª Região Militar à época existe desde 1920. Antes do Exército, o terreno pertenceu no passado ao comendador Mariano Procópio Ferreira Lage e lá se hospedou a Família Real, em 1861. A sede da 4ª RM agora fica em Belo Horizonte.

‘Faziam a imagem do preso de terrorista’
Hoje com 67 anos, Paulo Gutierrez conta que ao ver as tropas do general Mourão marchando diante de sua casa temeu por uma guerra civil. Ele tinha apenas 17 anos. “Sabia que teria que me alistar em pouco tempo”, relembrou. E, no ano seguinte, teve que servir. Ficou no Exército por dois anos, até o fim de 1966, no 4º Esquadrão de Reconhecimento Mecanizado, que ficava no prédio anexo ao quartel da 4ª Região Militar. Ele conta que, ao longo do tempo em que serviu em Juiz de Fora, acompanhou a intensa movimentação da prisão interna da unidade. “Vi gente ser presa. Alguns por um período maior, mas a grande maioria só vinha para ser ouvida na junta militar. Quando tinha preso político sempre havia guarda especial e a comunicação era proibida. Você só via. Pouquíssima regalia. Tomar um sol, às vezes”, lembrou Gutierrez.

Ele relata que não conseguia entender com exatidão o que acontecia pois a imprensa era censurada e as conversas, restritas. No quartel, palestras davam a linha. “Tinha uma lavagem cerebral. Eles faziam a imagem do preso como terrorista, que era perigosíssimo, que matava, que fazia o diabo. Passava momentos tensos pensando no que podia acontecer. Ficava torcendo para não ter nada. Eu só queria viver”, afirmou. Hoje, como secretário-adjunto da Prefeitura de Juiz de Fora, Gutierrez se diz satisfeito de, como vereador em 1995, ter conseguido fazer uma resolução para reabilitar vereadores cassados no golpe. “Vi lá dentro e não entendia o que estava acontecendo. Depois, consegui corrigir um erro da cidade”, contou.

Quem passou pelo Exército antes do golpe também sentiu a insegurança no ar. O professor do mestrado de Comunicação da Universidade de Juiz de Fora, José Luiz Ribeiro, 71 anos, teve que cumprir o serviço obrigatório entre 1961 e 1962. Só de lembrar o dia da renúncia de Jango as sobrancelhas arqueiam. “Ficamos presos todos os praças. Ninguém podia ir para casa. Regime de prontidão total”, disse. Depois, os boatos cresceram e todos os sargentos vistos como progressistas começaram a ser transferidos.

Ao dar baixa, ele entrou para a faculdade de Jornalismo e se dedicou ao teatro. Foi por meio da arte que resistiu à ditadura e enfrentou a censura. Uma das peças em que atuou, ‘Diário de um louco’, adaptação de Rubem Rocha Filho, foi proibida na noite de estreia. “O público chegando e o censor diz que a peça não foi liberada por causa de cena em que um rei comemora a marcha das mulheres com Deus de uma maneira completamente irônica”, explicou. A peça acabou apresentada com o ator usando uma mordaça na cena cortada.

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