domingo, 7 de julho de 2013

Uma energia vulcânica irrompeu nas ruas


Leonardo Boff*

Vou tentar fazer uma reflexão não convencional sobre as demonstrações multitudinárias ocorridas no mês de junho do corrente ano. É de natureza antropológico-filosófica. É notória, na reflexão antropológica e psicanalítica que  vigora no ser humano, uma energia vulcânica dificilmente controlável pela razão. Alguns a chamam de libido, outros de elã vital, estoutros de princípio esperança. Temos a ver com uma energia de construção e de destruição, com um caos originário que pode ser caótico e generativo. Todo o trabalho da cultura, das leis, da religião e da ética é criar um escoadouro para que essa energia possa fluir e ser regulada a fim de que seu lado construtivo prevaleça sobre o destrutivo. O equilíbrio é tênue. Em todo o momento e em cada situação essa energia está aí presente, borbulhando e tentando irromper e fazer seu curso histórico. A cultura, a religião, a ética e as leis constroem um arranjo existencial onde essa energia encontra certa estabilidade e equilíbrio.

Mas cada arranjo participa da implenitude e da vulnerabilidade de tudo o que existe. Lentamente, sua capacidade de regulação se enfraquece até esfacelar-se. Então, por um momento, as barreiras do rio se rompem, as margens são ultrapassadas e as águas buscam um novo leito. 

Grandes analistas da dinâmica das transformações como Toynbee, Jung e Freud entre outros se detiveram sobre este fenômeno. Instrutiva é a leitura feita por Freud em 1930, em plena crise econômico-financeira mundial, semelhante à de hoje, com seu famoso escrito O mal-estar na cultura (Das Unbehagen in der Kultur). Ele abandonou o rigor científico aplicado à psicanálise e, para perplexidade dos seguidores, abordou temas culturais com agudo senso de observação.

"Freud abandonou o rigor científico aplicado à psicanálise e abordou temas culturais."

Neste escrito Freud demonstra a força vulcânica desta energia vital e os limites da razão em querer contê-la. Diz explicitamente que se trata de um enfrentamento de “duas forças celestiais”: a força da vida (Eros) e a força da morte (Tánatos). O livro termina com uma inconclusão: ”O eterno Eros tem que empenhar grande esforço para afirmar-se face ao seu inimigo também imortal (Tánatos); mas quem pode prever o sucesso ou a saída para este embate”? Com essa aporia conclui sua reflexão.

Apliquemos esta compreensão ao fenômeno das ruas no Brasil.  Um arranjo politico-social foi construido pelo PT, a duras penas, contra uma tradição elitista e antipopular de séculos. O PT significava a cristalização do poder social acumulado nas  bases, transformado agora em poder político. Conquistou o lugar central das decisões dos destinos do país. Apresentava-se como a resposta à questão que durante décadas se discutia nos grupos e que movia mentes e corações: “Que Brasil queremos que seja libertador para as grandes maiorias historicamente condenadas e ofendidas?"

Uma vez no poder, o PT atendeu às principais urgências populares desde sempre negadas ou insuficientemente satisfeitas. Finalmente, a dignidade dos condenados a serem não cidadãos foi resgatada: puderam comer, ter um mínimo de educação, de saúde e de benefícios da modernidade como luz elétrica, acesso à casa e ao sistema bancário. Cerca de uma inteira Argentina de marginalizados foi incluída na sociedade contemporânea. É um feito de magnitude história. A desigualdade social, nossa maior chaga, diminuiu em 17%.

Mas este projeto de inclusão alcançou depois de dez anos o teto. A ilusão do PT foi entender-se como a realização do Brasil que queríamos. Abandonou o trabalho nas bases  e perdeu a organicidade com os movimentos sociais organizados que o criaram. Nas bases não se discutia mais política nem se sonhava com a construção de um Brasil ainda melhor.

O povo, uma vez desperto, quer mais. Não basta sair da miséria e da pobreza. Postula um outro Brasil, onde não haja contradições escandalosas como  a atividade política movida por interesses,  conchavos e negócios, como a corrupção fruto da relação incestuosa entre o poder publico e os interesses particulares dos poderosos. Os privilégios das elites dominantes contam mais que os direitos dos cidadãos. Para elas são feitos os principais investimentos, restando sobras para as necessidade da população. Daí se explica a má qualidade do transporte coletivo em cidades inchadas, porque não se fez a reforma agrária, a saúde é precária e a educação desqualificada. Acresce ainda a burocracia estúpida, complicada, feita para não atender às demandas do povo. 

As ruas foram ocupadas pela energia da indignação. Não se trata de vinte centavos mas de respeito e de direitos negados. A própria destruição de bens públicos são gestos de negação de um mundo que nega as pessoas. Quer dizer, o arranjo histórico-social já não funcionava mais. Nega-se tudo: o poder público, os partidos, qualquer sigla de organização. O que está ai tem que mudar. É uma sociedade em estado nascente cuja centralidade deve ser a coisa pública, de todos.

Não entender essa irrupção é negar-se à realidade. Não fazer as mudanças exigidas é permitir que a energia do negativo triunfe. Precisamos de muito empenho para que o “eterno Eros” garanta que o rio social encontre novo leito.

*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, escreveu, entre muitos  outros livros, 'Que Brasil queremos?' (Vozes, 2000). 
http://www.jb.com.br

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