quarta-feira, 19 de julho de 2017

Paes usou registro fictício para anular gastos em final de gestão no Rio.


Eduardo Paes cumprimenta Marcelo Crivella em
cerimônia de transferência do cargo de prefeito do Rio.
ITALO NOGUEIRA
DE DO RIO

Uma ordem do ex-prefeito Eduardo Paes (PMDB) nos últimos dias de sua gestão à frente da Prefeitura do Rio levou ao cancelamento de gastos usando uma matrícula fictícia –de servidor inexistente– no sistema financeiro do município. O procedimento, que levantou a suspeita de manobra nas contas, virou alvo de sindicância na prefeitura e de processo no Tribunal de Contas no Município. Relatório da Controladoria Geral do Município na atual gestão do prefeito Marcelo Crivella (PRB) apontou que a ordem do peemedebista retirou do sistema do município R$ 497.000.000,00 em empenhos (reserva no orçamento), dos quais R$ 350.000.000,00 de fato eram devidos a fornecedores. Foi necessária uma auditoria da atual administração para identificar quais serviços tinham sido prestados –cujos pagamentos, portanto, não poderiam ser cancelados. A contabilidade pública tem três fases: empenho, liquidação e pagamento. Na primeira, o gestor reserva o dinheiro no orçamento para um serviço e autoriza o início do trabalho do fornecedor. A segunda ocorre após o ordenador da despesa verificar a entrega do produto ou serviço, momento em que reconhece a dívida para pagamento –terceira e última fase.

No dia 23 de dezembro, Paes determinou que fossem cancelados todos os empenhos não liquidados do município "diretamente no sistema". A ordem tinha como objetivo não deixar serviços não concluídos como "restos a pagar" para o próximo ano. O secretário municipal de Fazenda à época, Carlos Viegas, alertou ao prefeito que tal medida poderia afetar casos em que os serviços foram efetivamente prestados. Isso porque há um intervalo natural entre a conclusão do trabalho, a verificação do gestor e a liquidação no sistema.

Em seu despacho, Viegas diz que não seria possível analisar cada nota de empenho para verificar a entrega do serviço ou não. Assim, pede apenas a preservação de alguns itens, como ações essenciais de saúde e educação. Depois de algumas alterações no programa do Fincon (sistema financeiro do município), o cancelamento em bloco dos empenhos foi efetuado. Um quarto do total cancelado por Paes atingiu a Secretaria de Saúde do Rio.

Inicialmente, ficou registrado no sistema que a ordem havia partido dos gestores de cada área, tais como secretários e presidentes de empresas públicas. A Folha apurou que, surpreendidos e preocupados com a regularidade, muitos pediram a troca da "autoria" dos cancelamentos. O então controlador-geral do município, Antônio César Cavalcanti, determinou ao presidente do Iplan-Rio (empresa municipal de tecnologia da informação), Fábio Pimentel, a criação de uma "matrícula genérica". A Tabela Cidadão, documento em que todos os funcionários da prefeitura são registrados, ganhou então um novo integrante: Operação Automática Cancelamento Empenho, matrícula número 9000201-6. No dia 29 de dezembro, foi atribuído a ele o cancelamento de gastos, sem vincular a nenhum servidor.

A reportagem apurou que o Iplan até já criou outras matrículas falsas no sistema, mas só para realização testes, sem função prática. Pela primeira vez, portanto, um "avatar" foi o responsável por atos financeiros da prefeitura.

O QUE ACONTECEU

Ordem
O Tribunal de Contas do Município determinou que a Prefeitura do Rio evitasse que o ano fosse encerrado com empenhos não liquidados

Manobra de Paes
Empenhos (inclusive com serviços entregues) foram cancelados por um perfil fictício, criado sem vinculação com qualquer gestor, a mando do prefeito

Problemas
Servidores atuais tiveram de fazer extensa auditoria para identificar empenhos cancelados incorretamente, para que fornecedores fossem pagos. Esses gastos serão incluídos no Orçamento deste ano, que já tem deficit de R$ 3.000.000.000,00. A assessoria de Paes disse à Folha que não foi criado nenhum novo protocolo e que a medida foi tomada porque "praticamente nenhum" órgão municipal respeitou a orientação de cancelar os empenhos.

Na discussão sobre o cancelamento dos empenhos –registrado num processo administrativo ao qual a Folha teve acesso–, Paes usa como justificativa uma decisão do TCM que determina o cancelamento de empenhos cujos "fatos geradores não tenham ocorrido dentro do exercício". O tribunal disse que a motivação apontada pelo ex-prefeito é "absolutamente equivocada". Mesmo assim, as contas de Paes de 2016 foram aprovadas –os conselheiros consideraram que não houve burla jurídica ou maquiagem relevante nas contas.

Mas há outro processo em curso no tribunal para avaliar especificamente o procedimento. A Procuradoria-Geral do Município também analisa a legalidade do ato. Segundo a auditoria da CGM, apesar de haver dinheiro em caixa para quitar compromissos, ele era insuficiente para alguns recursos vinculados, como convênios.

'MERA REGULARIZAÇÃO'
A assessoria de imprensa do ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (PMDB) afirmou, em nota, que não foi criado novo protocolo para cancelar os gastos empenhados. De acordo com a nota, a medida foi tomada porque "praticamente nenhum" órgão municipal respeitou a orientação de cancelar os empenhos não liquidados. A equipe cita decreto de outubro do ano passado que estabeleceu datas limites para fechamento das contas da gestão. "Na última quinzena de dezembro, ao verificar os dados no sistema Fincon, observou-se que os órgãos não haviam seguido a orientação determinada e que, portanto, várias despesas indevidas seriam inscritas em restos a pagar não-processados [sem prestação de serviço], contrariando inclusive alertas e recomendações do Tribunal de Contas do Município", diz. "A solução encontrada foi analisar as despesas por grupos e cancelar as demais usando uma senha Master do sistema que já existia, não tendo sido criado nenhum protocolo novo no sistema Fincon para isso", afirma.

No processo administrativo, há referências a mudanças no programa do sistema financeiro da prefeitura para realização do procedimento. Segundo a nota, "o fato de existir sobra de caixa em dezembro de 2016 para cobrir todas as despesas mesmo na hipótese absurda de serem todas reempenhadas" e "a própria irrelevância do valor de cancelamento de empenhos" frente ao orçamento "comprovam" ter sido "mera regularização orçamentária".

O ex-controlador-geral do município, Antônio César Cavalcanti, disse que os cancelamentos não foram atribuídas à matrícula de Paes porque a ideia era deixar claro a ordem dada pelo ex-prefeito. "A gente não tinha certeza se tinha qualquer outro procedimento anterior realizado na matrícula do prefeito. A gente preferiu, por conta da correria de tempo, uma saída que deixasse evidente a operação que estava acontecendo."

O diretor-presidente do Iplan-Rio, Fábio Pimentel, afirmou que já prestou os esclarecimentos aos órgãos.

http://m.folha.uol.com.br

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