segunda-feira, 1 de agosto de 2016

'Estou começando a viver agora', diz idosa vítima de violência por 50 anos

Joana Santos, de 67 anos, foi ameaçada e espancada pelo ex-marido. G1 ouviu 10 personagens para abordar os 10 anos da Lei Maria da Penha.


Clara Velasco
Do G1, em São Paulo

O G1 ouviu 10 personagens para abordar diferentes pontos de vista sobre a Lei Maria da Penha, que completa 10 anos. A seguir, leia o depoimento de Joana Santos, de 67 anos, moradora de São Paulo (SP)*: "Meu pai que arranjou meu casamento. Eu não queria, mas ele me obrigou a casar. Eu tinha 14 anos e meu ex-marido, 21. Meu pai chegou a mentir a minha idade pra que eu pudesse casar legalmente. E eu chorava e chorava. Na primeira vez que meu ex-marido tentou me matar, eu tinha 17 anos e estava grávida do nosso segundo filho. Ele veio pra cima de mim, falando: ‘vou te matar, você não tem pai nem mãe por aqui, é cão sem dono’. Isso porque a gente tinha mudado de estado. Eu peguei um pedaço de pau e ameacei ele: ‘agora você vem, quem puder mais, chora menos’. Ele parou.

Ele me agredia muito, me xingava, me empurrava na parede. Eu fui levando pra ver se as coisas mudavam, mas o tempo foi passando e ele foi ficando mais agressivo. Tudo era briga, todo dia era uma discussão. Ele pirou de um jeito que vivia armado. Tinha uma garrucha. Ele chegou a me ameaçar com a arma. Teve um dia que fui pra cima e tomei a arma dele. As crianças estavam dormindo. Já pensou ele atirar dentro de casa? Eu podia até morrer, mas meus filhos, não.

Isso tudo por causa da casa. Ele sempre falou que queria a casa só pra ele. Teve um dia que ele estava em casa com nossa filha e falou: ‘olha, eu estou planejando matar sua mãe, mas eu quero que você saia de casa’. Minha filha falou: ‘pai, o senhor tá ficando louco?’. ‘Eu tô falando sério. Sai de casa. Vai pra casa da sua sogra, fica lá uns 10 dias. Enquanto isso, eu mato sua mãe e enterro ela no quintal’. Minha filha perguntou por que ele queria me matar e ele falou: ‘eu quero a casa só pra mim’. Ele ainda a ameaçou. Falou que, se ela me contasse, ele ia matar ela também.

Eu vivia com medo. Pensei em ir na delegacia, mas tinha medo por causa das ameaças que ele fazia. Ele falava assim: ‘primeiro, vou matar sua família, depois, mato os meninos e te mato’. A família sabia, todo mundo sabia. Falei pro meu irmão tomar cuidado com ele. Eu não tinha saída. Na minha mente, eu não tinha pra onde correr.

E essa história da casa é antiga. Eu tive uma casa que tive o gosto de morar cinco anos no início do casamento. Ele passou a casa pro nome de outra mulher, e eu e meus filhos fomos pra rua. Depois, lutei, entrei no mutirão e consegui uma casa pela Cohab. E ele sempre nessa, de querer a casa só pra ele.

Ele me vigiava. Quando ele saia do serviço, em vez de ir pra casa cuidar dos filhos, ia me vigiar. Ele ficava escondido nas moitas, me olhando, e nunca ia de mão vazia. Eu olhava pra um lado, olhava pro outro, eu não via ninguém. Eu não sei onde esse homem se escondia. Teve uma vez que eu estava subindo a ladeira de casa, vi aquele vulto e senti uma faca nas costas. E ele falou: ‘assustou? Vou matar você agora’. E eu respondi: ‘pode matar’. Mas aí apareceu um vizinho e ele saiu.

Sempre bati de frente, mas nunca lutei fisicamente com ele. Quando eu lutava mesmo era quando ele queria fazer sexo comigo e eu não deixava. Passei noite sem dormir. Eu apanhava uma calça comprida e uma cinta, já pra ele ter dificuldade caso eu estivesse dormindo. Teve um dia que acordei e estava toda suja. Eu me revoltei. Esse dia eu saí do sério. Falei: ‘sabia que isso é crime? Eu estou dormindo’. Ele me pediu desculpas, mas eu continuei: ‘você já não me dá paz, não me dá sossego, e vai atrapalhar meu sono? Nunca mais faça isso’. Foi aí que ele parou.

Mas eu tinha medo. Tinha vez que eu ia para a casa do meu irmão passar dois, três dias para recuperar o sono. Se eu deitasse e dormisse, eu não contava que ia acordar mais. Era difícil.

Eu já pensei em sair de casa várias vezes, cheguei a arrumar minha roupa. Mas na hora eu parava pra pensar por causa dos meninos. Eu pensava: ‘vou sair de casa, sendo que eu que lutei pra conseguir?’. Eu achava que era muito pra minha cabeça, deixar ele de boa e eu ficar na rua com os meninos. Eu só pensava neles, nem em mim eu pensava.

Uma vez eu estava dando mamadeira pro meu neto e ele chegou em casa. Ele tomou a mamadeira da minha mão, catou o menino e jogou ele no chão. Eu falei: ‘você tá doido?’. E ele: ‘não tô doido, não, só vou te matar’. Ele grudou no meu cabelo. Eu tenho falha até hoje que ele arrancou. Deu um soco na minha cabeça que eu rodei. E eu só pensava: ‘Deus, não me deixa cair, senão ele me mata, e eu tenho que cuidar dessa criança’. Eu tomei força e não caí. E ele foi ficando mais bravo: ‘você não caiu, não, miséria? Eu quero ver a cor do teu sangue’. Minha filha não podia chegar perto, meu genro também não. Todo mundo tinha medo dele.

Eu fui no médico porque, como ele arrancou um punhado de cabelo e deu o soco, parecia que tinha abalado todos os meus miolos. A médica me passou um remédio e me mandou ir na psicóloga. Foi assim que acabei fazendo atendimento em uma ONG. Quando cheguei, estava no fundo do poço. Me ajudaram muito, e pensei que precisava tomar uma atitude antes que acontecesse o mal. Eu fui e denunciei. Fiz o boletim de ocorrência sem ele saber. Ninguém sabia.

Aí cheguei em casa e ele pediu pra eu ver o que estava passando no jornal. Fiquei curiosa e fui ver. Era um rapaz que foi assaltado e estava sendo espancado. Ele falou: ‘do mesmo jeitinho que tá acontecendo com esse rapaz, com você vai ser pior. Vou pegar um cabo de vassoura e vou enfiar nas partes íntimas. E depois eu te mato’. Você acredita que ele teve coragem de falar isso?

Eu pensei que ele não ia ter coragem de fazer nada, que era só pra botar medo. Só que, chegou um dia, eu estava no banheiro pra ir tomar banho. Ele deu um pulo e começou a me esmurrar. Falei: ‘você tá me machucando’. E ele: ‘mas é pra machucar mesmo, hoje é seu último dia de vida'.

Eu consegui sair do banheiro, mas ele continuou me espancando. Minha menina estava em casa, ouviu o barulho e foi ver o que estava acontecendo. Ela gritou: ‘pai, o que o senhor está fazendo?’. E ele falando que ia me matar. Meus filhos chegaram. Parecia um velório a minha casa. Isso começou 17:00hs., e foi terminar depois de meia-noite. Um tormento, sabe?

Ele me deixou toda marcada. Quando a denúncia chegou no fórum, me deram a medida protetiva. Quando o oficial de justiça chegou pra entregar o documento pra ele, teve que chamar até a polícia pra ele sair de casa. Meu filho falou: ‘mãe, a senhora não devia ter feito isso'. E eu: ‘não? Devia ter esperado ele me matar?’. E meu filho: ‘mas a senhora não morreu’.

Agora está entre Deus e a Justiça. Eu não vou parar desde que ele fique na dele. O ruim é que, mesmo com a medida protetiva, quando eu saio de casa, sei que minha filha deixa ele entrar. Falei que na próxima vez que isso acontecer, vou tirar uma foto e mandar para a polícia.

Foram 40 anos de casamento com ele e 11 anos separada, mas ainda morando debaixo do mesmo teto. Eu estou começando a viver agora. Eu nasci de novo, parece que eu saí do ventre de minha mãe. Antes eu não vivia. Sabe o que é não viver?

Eu estou aqui contando essa história e pedindo encarecidamente para que as mulheres que passam por violência com seus esposos, que elas não fiquem caladas, não, pelo amor de Deus. Se ela tem medo de denunciar, que ela perca esse medo, vá em frente, derrube essa barreira. Porque é muito triste viver atormentada e chegar até a morte. Se Deus não me dá força pra denunciar, quem sabe eu não estaria enterrada no fundo do quintal?"

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada".

http://g1.globo.com/

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