terça-feira, 19 de julho de 2016

‘Me identifico com a dor de Tolentino’, diz sargento expulso do Exército depois de se assumir gay

Ao lado do marido, ele luta contra a perseguição a homossexuais nas Forças Armadas e pelo fim da Justiça Militar.


Casal estampou capa de revista em 2008. Eles foram 
presos depois de participar de programa ao vivo.


A última terça-feira representou um marco na teledramaturgia nacional. Pela primeira vez uma cena de sexo entre dois homens foi transmitida em uma novela. A dor e o medo de se reconhecer gay e a incontrolável entrega a esse natural desejo era na tela expressada pelo Capitão Tolentino, interpretado pelo ator Ricardo Pereira. Atuação que emocionou o ex-sargento do Exército Fernando Alcântara de Figueiredo, expulso da instituição depois de assumir sua orientação sexual. Ver a cena de amor entre o capitão e o fidalgo André em ‘Liberdade. Liberdade’, provocou uma volta a um passado de sofrimento e luta. Assim como o Tolentino, Fernando teve o primeiro contato sexual com outro homem quando já era um militar. ”Vivi o mesmo conflito do personagem. Sentia uma dor muito grande em ter que admitir ser “diferente”, por amar de forma “diferente”. Minha formação foi católica, tradicional e nordestina. Já no Exército, durante o curso de formação, me vi apaixonado por um outro aluno no curso de formação (para sargentos). O sofrimento foi terrível”, lembrou o ex-militar. Por medo daquele desejo, ele fugiu do colega e do sentimento que sentia.

O primeiro e grande amor nasceu quando Fernando fôra selecionado para integrar o Batalhão da Guarda Presidencial. A unidade militar é a dona da maior responsabilidade das Forças Armadas brasileira. Como o nome diz, o batalhão protege o presidente da República e os palácios do governo. “Para mim foi duro admitir que estava tendo algo mais íntimo com outro homem e que, ao mesmo tempo, deveria manter absoluta discrição”. Esse homem era o também sargento Laci Marinho de Araújo. Fernando estava apaixonado e encontrava no colega de farda a coragem para viver plenamente sua afetividade. A história de amor ocorria paralelamente a uma verdadeira trama de investigação criminal. Fernando conta que descobrira um esquema de fraudes dentro da instituição militar envolvendo a verba que deveria ser usada para custear cirurgias de alto custo. Os prejudicados com a revelação da falcatrua passaram a persegui-lo. “Eles tentaram achar alguma mancha na minha vida dentro do Exército e não conseguiram encontrar nada. Sempre respeitei a instituição, cumpri o meu dever. Eles descobriram o meu relacionamento com o Laci e passaram a me perseguir, a me atacar, usando como argumento a minha vida pessoal”, contou.

O argumento usado pelos que o perseguiam, Fernando lembra, foi o estranho artigo 235 do Código Penal Militar, vigente desde a Ditadura que trata do crime de pederastia. O texto pune quem “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. O relacionamento, segundo o casal, foi vivido apenas da porta do quartel para fora, mas foi o alegado motivo para a abertura de investigações com o objetivo de desmoralizá-lo. Sentindo-se acuados, o casal decidiu tornar pública a retaliação no Exército. A vida de Fernando e Laci ganhou as páginas da revista Época em 2008. Fernando fazia revelações sobre as fraudes dentro do Exército. Laci contava que a força armada não reconhecia a disfunção neurológica que o afastava do trabalho. Ele chegara a ser preso por deserção. Laci e Fernando acusavam a força militar de perseguição pelo mesmo motivo: homofobia. Na semana seguinte à publicação, o casal concedeu entrevista ao vivo no programa Superpop, da Rede TV, reafirmando as mesmas denúncias contadas à revista. A consequência foi imediata e idêntica ao destino que o fidalgo André viverá nos próximos capítulos da novela passada no séxulo XIX. Na vida real, a emissora foi cercada por militares para efetuar a prisão de Laci. O motivo alegado foi revelado pelo Exército somente dias depois. Uma banalidade compreendida dentro do Código Penal Militar. O casal concedeu entrevista com o uniforme do Exército em mau estado. Fernando também foi preso dias depois por ter viajado de Brasília para São Paulo sem autorização. “Por isso me identifico tanto com o personagem do Ricardo Pereira. Consigo fechar os olhos e me enxergar perfeitamente nos conflitos vividos e me identifico perfeitamente com a dor e o sofrimento vividos por ele”, disse Fernando.


Fernando foi expulso do Exército depois de se assumir gay.

Foram longos e intensos quatro anos até o Exército decidir sobre o destino do casal. Fernando acabou expulso e Laci foi reformado. Contudo, o casal afirma que as perseguições continuam. “Até hoje os proventos do Laci estão cortados. Ele só recebe um soldo simbólico. O Exército só reconheceu em parte seus direitos remuneratórios. Os proventos dele são insuficientes para custear o tratamento médico que ele faz jus e lutamos na justiça por isso”, contou.

O casal recorreu à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Eles entregaram gravações em que oficiais ofendem e zombam do casal. O processo está em estágio de admissibilidade, aguardando julgamento. Fernando e Laci se tornaram ativistas na luta pelo fim da Justiça Militar em todos os estados do país. “A cultura em pleno vigor nas Forças Armadas ainda é exatamente a que forjou seu surgimento. Ainda subsiste o famigerado artigo 235 tornando crimes atos de ‘pederastia’, tratando com segregação os homossexuais. O ódio aos homossexuais está tão presente quanto no contexto histórico vivido por Tolentino a sua época”, disse Fernando. “Na ocasião, a punição era a forca; hoje, há uma ordem para a execração pública. O homem ou a mulher é declarado indigno e seus registros são banidos dos assentamentos militares. Nossa luta é pelo fim da Justiça Militar, única forma de começarmos a desconstituição secular do ódio aos homossexuais no Exército do Brasil”, concluiu.

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