segunda-feira, 6 de junho de 2016

“Eu tinha dez anos quando meu tio começou a me violentar”

A executiva Fabiana*, de 38 anos, já tentou o suicídio duas vezes, mas nunca teve coragem de denunciar o agressor para poupar o sofrimento da família.


Você já sofreu violência sexual? A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Acontece com celebridades e anônimas, em todas as classes sociais, em casa, na rua, numa festa e até no trabalho. Há casos em que a vítima está consciente, outros em que não. Para chamar a atenção para essa dolorosa – e tão frequente realidade – publicaremos um relato de estupro por dia.

Desde pequena, fui criada pela minha tia, irmã da minha mãe. A família era muito grande e morávamos todos na mesma rua, na serra fluminense. Como minha mãe trabalhava fora e minha tia gostava muito de mim, eu ficava muito tempo com ela. Ela é casada com um grande comerciante da região e acabei indo morar na casa deles ainda bem pequena. Tinha apenas dez anos, quando meu tio começou a me violentar. Nessa época, ele passava bastante tempo em casa por conta de um problema de coluna e, toda vez que eu chegava do colégio e não tinha ninguém por perto, ele se aproximava e começava a passar a mão pelo meu corpo. Ele dizia que eu não podia contar aquilo para ninguém, ameaçava tirar o emprego da minha mãe, que trabalhava pra ele em um de seus comércios, caso eu revelasse alguma coisa. Como eu era muito criança, não sabia ao certo se aquilo era mesmo errado.

Passaram-se três anos e os assédios só aumentaram. Até que, certo dia, eu estava na escola, e ele foi me buscar dizendo que meu pai havia sido internado e que ele me levaria ao hospital. A diretora autorizou a minha saída. Quando entrei no carro, descobri que se tratava de uma mentira. Ele queria me matar. Com um revólver apontado para a minha cabeça e em silêncio, ele dirigiu para um lugar afastado da cidade. Mas para a minha sorte, um imprevisto aconteceu. Um homem aparentemente bêbado se atirou na lateral do carro, que não estava em alta velocidade, e começou a bater na janela. Meu tio decidiu parar e deixar o automóvel para ver o que estava acontecendo. Foi então que o homem começou a espancá-lo, até o deixar desacordado. O rapaz se fingiu de bêbado ao me ver na mira do revólver e inventou tudo para me tirar de lá. Ele me levou até a casa dos meus pais e eu o pedi que não contasse nada. O episódio me deixou tão nervosa, que tive um taquicardia, diante da minha família. Fui levada ao hospital, mas com medo, me recusei a revelar qualquer coisa. Eu tinha apenas 13 anos. Minha mãe chegou a insistir para que eu contasse alguma coisa, mas eu não conseguia. Sentia vergonha.

Aos poucos, fui voltando à rotina e, inclusive, a frequentar e a dormir na casa da minha tia, que não só foi a maior responsável pela minha criação, como também pela negligência em relação a mim. Neste retorno, ele voltou a me assediar. Certa noite, minha tia despertou com o meu choro. Quando chegou ao quarto, viu o próprio marido em cima de mim. No dia seguinte, ela me fez arrumar as coisas e voltar para a casa dos meus pais. Fui expulsa. Ela se recusou a tomar partido. E é importante que saibam que não estou falando de pessoas ignorantes. Me refiro a uma família que tem ótima situação financeira e formação profissional. De cara, minha mãe me perguntou se eu tinha feito alguma coisa. Diante da minha negativa, me questionou se meu tio havia feito algo comigo. Lembro exatamente da pergunta: “Você não deixou ele tocar em você, né?” Imediatamente, senti um medo enorme e neguei tudo. Dias depois, ele a demitiu. Minha mãe ficou com muita raiva de mim. Ela achava que eu havia sido o problema. Deixei de frequentar as festas de família.

Depois desse transtorno, passei a ter apagões de memória, que começaram a me prejudicar na escola. Quando completei 15 anos, decidi mudar de cidade para trabalhar. Precisava me afastar da ameaça constante de tê-lo por perto. Me tornei vendedora. Aos poucos, fui fazendo um bom trabalho, o que me rendeu transferência para outras cidades. Aos 19 anos, quando virei gerente em um grande shopping do Rio de Janeiro, ele apareceu por lá de surpresa. Passou a me perseguir. Hoje, tenho 38 anos, moro em Minas Gerais e trabalho como executiva de uma multinacional, e ele, com 60 anos e ainda casado com minha tia, continua me procurando. Bloqueio os números, digo que vou denunciá-lo, mas ainda não tenho coragem. Entendo quando alguém diz que não denunciou por vergonha. A gente quer poupar nossa família do sofrimento que isso provoca. E quando vejo reportagens de que o agressor é normalmente algum familiar, gente conhecida… É realmente isso.

Meus primos o acham um santo, o melhor pai do mundo. Ninguém acreditaria em mim. Já tentei o suicídio duas vezes aos 20 e poucos anos. Passei a adotar uma postura masculina diante de outros homens. Sempre distante. Fiz seis anos de terapia para conseguir voltar a ter vida social e sexual. Há três, acho que posso dizer que me sinto mais segura em relação a isso. Porém, toda vez que um novo caso de abuso se torna público, fico deprimida, não consigo dormir. Minha história vem à tona. Quem passa por isso nunca mais vai ser normal, não consegue.”

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada.
http://revistamarieclaire.globo.com/

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