terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Faz sentido ser apaixonado por um partido político?

O passionalismo partidário é um tanto ridículo, ainda que eficiente para quem dele se aproveita para chegar – ou se manter – no poder.


FERNANDO SCHÜLER

O apaixonado é frequentemente um tolo, ensinou Roland Barthes. Barthes se referia à paixão amorosa. A paixão louca dos amantes, dos namorados. Dos amores eternos e dos impossíveis, desses que a gente vê nos filmes. Não faço ideia do que Barthes diria de um sujeito apaixonado por um partido político. Ou pior: por um político de carne e osso. Um prefeito, governador, presidente ou ex-Presidente. De minha parte, teria um bom nome a dar a esse sujeito, que prefiro não usar aqui. Digo apenas que acho o passionalismo partidário um tanto ridículo, ainda que eficiente para quem dele se aproveita para chegar – ou se manter – no poder.

Sobre isso, tive uma experiência interessante, dias atrás. Escrevi um artigo a respeito das investigações sobre Lula. Havia me impressionado a reação apaixonada e violenta da entourage lulista contra as investigações do Ministério Público e da Política Federal, e resolvi escrever sobre o assunto. Meu ponto era apenas dizer que o país tem instituições, que é importante que elas possam agir com serenidade, e que Lula deve der investigado como o seria qualquer outro brasileiro. Que isto era importante, no caso de Lula, precisamente por ele ser, como costumam frisar seus apoiadores, o “mais importante líder político deste país”.

Recebi umas 400 mensagens. 30% delas de apoiadores do ex-presidente. 100% furiosas. Não dá pra citar todos os argumentos – diria “fragmentos”, num tom barthesiano – mas a coisa vai por aí: Lula é inocente/Não deve ser investigado/o Ministério Público, Polícia Federal e judiciário são instituições de araque/outros partidos também roubam/a mídia é de direita/querem dar um golpe como fizeram com Jango e JK. Me surpreendeu a inclusão de “JK”. Na faculdade aprendi que o JK era de “direita”. Talvez fosse para dar “amplitude” ao argumento. Mas esse não é o ponto. Gostei das mensagens: pude ampliar minha coleção de fraseologia jus esperniandi. Uma fonte inesgotável de bolinhas de sabão ideológicas, sempre com o mesmo núcleo: a mídia, o golpe, a direita.

O que realmente me surpreendeu foi não receber sequer uma única mensagem dizendo: “podem investigar, nós confiamos na honestidade do Lula”. Ou, algo mais sofisticado: “é bom investigar. Lula é nosso líder (entre outras razões) porque é honesto. Se ele não for, ao menos saberemos e poderemos rever algumas posições”. Mas nada. Nem uma mísera mensagem nessa direção.

O intrigante seria esta nossa atitude em qualquer tema relevante da nossa vida. A papinha do bebê, por exemplo. Imaginem a mãe dizendo: “ok, há suspeitas de que a papinha que usamos é tóxica, mas não quero saber. Conversa da concorrência, vamos continuar comprando”. Pense. Qualquer assunto: a ração do gato, o colégio das crianças, a erva do chimarrão, a marca do silicone. Você nunca vai escutar a seguinte frase: "vou colocar esse silicone amanhã. A Anvisa diz que a marca é suspeita, mas não quero saber. Confirmei a cirurgia". A pergunta a fazer é: se não agimos assim com as nossas coisas, então por que tratamos desse jeito nossas escolhas políticas?

Por que, diante de informações que não nos agradam, tapamos os ouvidos e cantarolamos, como um criança mimada? Por que, de antemão, em vez de ponderar os fatos, resolvemos que a ração do gatinho é ótima, ainda que denunciada pelo conselho de veterinária? Em vez de prestarmos atenção às investigações do Ministério Público, preferimos entrar na hashtag “lulaeuconfio” e ficar gritando “é tudo uma conspiração da direita!”

A questão mais geral é: há alguma “racionalidade” na paixão política? Arrisco dizer que sim. A explicação vai na linha do que o economista americano Anthony Downs chamou de “ignorância racional” do eleitor. A tese diz o seguinte: um vez que o voto de cada indivíduo decide quase nada, numa eleição, não é lógico investir muito tempo buscando – seriamente – informação sobre candidatos, políticas públicas, etc. A alienação não seria uma decisão irracional. Mais: quando o sujeito compra um celular desta ou daquela marca, ele toma 100% da decisão e arca com 100% do custo da sua escolha. Se o treco não funcionar, é ele quem arca com as consequências. Na política é diferente. Se ele escolher errado, todos vão pagar a conta. O custo é socializado, mas ele pode privatizar o benefício de manter sua “coerência”. Inventa uma explicação qualquer e toca a vida pra frente. Tudo isso funciona como um convite à irresponsabilidade. Não deveria ser assim, mas acabamos lidando com a política como lidamos com o futebol. Nos entregamos, xingamos a mãe do juiz, dizemos que está tudo arranjado. Nós sabemos de tudo. Inclusive que “não vai dar nada”, se tudo que dissermos não passar de uma grande besteira. A paixão política é assim, uma forma “saborosa” de alienação.

Antes que alguém tenha um chilique, digo que isso ocorre, em maior ou menor grau, com todos os partidos. Democratas, PSDB, PMDB. Até pelo recém-criado “partido da mulher brasileira” deve ter um ou outro apaixonado. Mas o lulo-petismo, vamos convir, é, de longe, o caso mais agudo. Se pudesse sugerir alguma coisa, recomendaria que as pessoas fossem um pouco mais criativas: que se apaixonem por uma grande ideia. A liberdade, por exemplo. Ou a justiça, os direitos humanos. A livre escolha educacional (uma das minhas, reconheço). A filantropia, quem sabe. Mas sempre com um chá de camomila por perto.

A política pode ser feita com um sentido de missão e um senso de responsabilidade, como sugeriu Max Weber. O primeiro serve como ímpeto, o segundo como comedimento. Não é uma equação fácil, nestes tempos nervosos, mas é a melhor para a democracia, além de preservar velhas e boas amizades. Daí meu gosto todo especial pela frase de Camus: “se houvesse um partido daqueles que não sabem se têm certeza, eu faria parte dele”.

Fernando L. Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e Professor do Insper.
Siga no Twitter: @fernandoschuler
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